O ESTRELA DE SANTAREM
A bordo do Estrela de Santarém ! Quem diria ?
O camarote pequeno, simples demais, a cama estreita e curta a obrigava a dormir de joelhos ligeiramente dobrados, a porta para o acanhado banheiro, tudo pintado com tinta a óleo cinza; o teto era da mesma cor mas um olhar atento encontraria vestígios de outros tons de cinza ou mesmo de um creme amarelado ou um verde desmaiado. Construído com lata ou ferro, não dava para identificar a presença de metal a não ser no chão de placas parafusadas em lugar dos azulejos comuns das construções da terra firme. Ranhuras ondeadas, rigorosamente paralelas em baixo relevo para garantir mais equilíbrio ao passageiro caso houvesse turbulência nas águas, coisa rara com bom tempo, pois a navegação em rio é mais livre de ondas. Na parede onde estava afixado uma espécie de criado mudo, uma pequena escotilha permitia ver a a tediosa paisagem das margens devastadas pela extração de madeira ou a água barrenta que se perdia de vista, o falado mar de água doce. Acima do travesseiro, ao lado da luminária, ela colou com fita adesiva uma pequena imagem de Santa Teresinha de Lisieux, onde se lia uma reza.
Dona Lina, alta como uma jogadora de basquete, professora de latim há pouco aposentada, viajava por conta da passagem – pacote de sete dias – ganha em uma rifa da igreja católica da cidade onde morou nos últimos 30 anos e estava prestes a deixar e se mudar para Santa Bárbara onde a aguardava sem habitantes a grande casa construída por seu avô. O irmão mais velho, solteirão afeminado, belo como Tyrone Power, professor de trabalhos manuais, tinha sido o derradeiro habitante e, alguns meses antes de sua morte trágica, havia deixado o casarão mobiliado e reformado com esmero.
Dona Lina jamais havia imaginado ir para a Amazônia. Teve que ir para São Paulo de ônibus e de lá voou até Belém onde embarcou no navio de turismo que fazia a viagem até Manaus na contra corrente. Navio simples, sem divisão de classes.
Dona Lina passara trinta anos no mesmo colégio estadual a ensinar Latim, língua morta da qual ela sentia o maior orgulho apesar do desinteresse dos alunos cada vez maior; já não queriam decorar as declinações, os pronomes, conjugar os verbos, viviam a perguntar sobre o porquê de se aprender o que não se falava mais. Um dia, deu um suspiro fundo e tentou explicar a uma aluna:
“Se um dia você estiver com seu filho diante de um monumento e se deparar com palavras escritas em Latim, ele pode querer saber o significado.”
A menina gargalhou e a classe fez o mesmo.
“E daí ?”
“Você não vai saber.”
“E daí ?”
A classe riu, ela tentou encontrar outro argumento.
“Vocês já repararam que muitos brasões e bandeiras têm frases em latim ?”
Uns poucos alunos lembraram-se de Non Ducor Duco, Libertas Quae Sera Tamen mas tinham esquecido a tradução.
“Atenção, classe, quantos aqui sabem que nossa língua portuguesa, o francês, o espanhol, têm origem no Latim ?”
Um meninão repetente que se sentava na última carteira e sempre se escondia, perguntou:
“Pra que serve aprender isso ? E por que a gente não aprende Língua Brasileira se a gente fala brasileiro ?”
Dona Lina sentiu a dor da úlcera mas a aluna mais adiantada, nota 10 em quase todas as matérias encerrou a discussão:
“Minha mãe falou que a Secretaria da Educação está estudando um projeto de acabar com as aulas de Latim.”
“E o que a senhora vai fazer da vida se só sabe ensinar Latim ?”
Dona Lina deu um tapa estrondoso na mesa:
“Chamada oral para nota !”
Tocou a sirene do navio avisando o horário do almoço dividido em dois turnos devido ao pequeno espaço do refeitório. Dona Lina, que se inscrevera no primeiro grupo pois tinha ouvido falar que o serviço era melhor, saiu, fechou a porta e subiu a escada que levava para o tombadilho onde já havia uma fila formada. Colocou-se depois da última mulher, Ada, senhora falante, popularíssima desde a hora do embarque, mãe de menina com doença degenerativa, que procurava dar à filha toda a alegria que pudesse.
Todo o navio sabia a história da adolescente Atena, contada pela mãe Ada: quando nasceu era um louro bebê gorducho, sorridente que mamava mais do que a maioria dos recém-nascidos daquela maternidade; entretanto tinha um sono perturbado, acordava e chorava um sem número de vezes, o que fez o pai abandonar a casa quando ela tinha pouco mais de cinco meses. O crescimento físico foi normal mas perturbado por fortes dores de cabeça e, a partir dos seis anos, começaram os desmaios e tombos aparentemente sem o menor motivo. Os médicos disseram à mãe:
“Dois anos de vida, no máximo”.
Ada não quis ou não soube repetir o nome da doença aos demais turistas do navio. A partir da hora do diagnóstico, programou em uma agência incessantes viagens sem volta para casa. Sua filha haveria de ser feliz durante esse tempo. Não era rica, o marido pagava uma folgada pensão para ela e para o sustento de Atena. Dava. Mesmo empurrando uma cadeira de rodas, foram à Disneyworld, ao Pantanal, às dunas de Natal, às cidades geladas da serra gaúcha, às Cataratas de Iguaçu, a Bariloche, Machu Pichu, Pirâmides do México, Fátima, Lourdes, Aparecida e muitos outros lugares onde diziam que Nossa Senhora havia aparecido e, uma vez ou outra, podia surgir do além iluminada e cercada de estrelas. Ada e Atena aproveitaram para rezar por si mesmas e pela humanidade.
Dona Lina, longe de seu latim conservado apenas no Pater Noster diário, perfumada de repelente contra insetos como todos os turistas a bordo, sentou-se ao lado de Miss Grace, americana missionária que pouco falava português. “Se Miss Grace falar em inglês eu vou responder em latim.” Desse lugar a americana podia sorrir efusivamente para todos que entravam e dizer God bless you. Miss Grace carregava em sua bolsa uma penca de fantochinhos bíblicos que ela usava para divertir as crianças. Algumas não gostavam e davam jeito de fugir e se esconder em outros cantos do navio.
Começou o serviço do almoço dividido em três etapas – salada de legumes e ovos cozidos, prato quente com carne, frango ou peixe e sobremesa de frutas. Refrigerantes podiam ser pedidos mas eram cobrados à parte. As mesas presas ao chão tinham galeteiras fixas com óleo, vinagre, sal e pimenta do reino. Dona Lina pediu guaraná sem gelo e Miss Grace regalou-se com água mineral gasosa gelada pois tinha pavor das águas do rio, dos trópicos, de todos os países subdesenvolvidos, cheias de vermes, vírus, poluentes.
Escovava os dentes com água mineral e já saíra de seu país com mil recomendações sobre o que fazer para não pegar malária, febre amarela, béri-béri, aftosa, desinteria, doenças venéreas e se defender das picadas de escorpiões, cobras, mosquitos da dengue e da mijada de um venenoso sapo das selvas que cegava. Era comum vê-la andando com uma rede de tule amarrada no chapéu, a borrifar repelente no corpo inteiro. Crente em Deus e no porvir, sorria e dizia amar o próximo como a si mesma. Uma de suas obsessões era alegrar quem não podia escapar, o seja, a pobre Atena já excessivamente animada pela mãe ansiosa e descontrolada, que marcava em um diário os dias do prazo de validade da filha. Aos poucos Atena aprendia a se defender com bocejos, desmaios, acessos de tosse, ameaças de vômitos. Como faltava uma semana para o Carnaval, depois do banho Atena era vestida com fantasias, uma por dia, todas compradas na Ladeira Porto Geral ou no Saara do Rio. Pirata, Nega Maluca, Rumbeira, Fada, Portuguesa, Cigana, Japonesa, Dançarina do Frevo, Francesinha, Bailarina Clássica. Quando a viram pela primeira vez alguns turistas estranharam:
“Ada, você está louca ?”
“Não, não estou louca não, cada dia minha filha neste mundo há de ser marcada por uma alegria. Até…”
Entenderam. Atena estranhou um pouco as saudações por demais efusivas mas gostou; quando as duas entravam no salão para tomar o café da manhã recebiam uma salva de palmas.
Sobretudo graças às atividades sociais do navio, formaram-se grupos de passageiros; o de Dona Lina, formado por ela, Cacilda e Carlinhos, jovens em lua de mel, Seu Miguel, português viúvo da Ilha da Madeira, Hebe e Otília, ex-alunas do Colégio Santa Cecília, da mesma cidade de onde viera Dona Lina tinham muita sorte no bingo. Outro, que sem querer provocava risos, de velhotas japonesas recatadas, não se desgrudava, ora temerosas mas em geral curiosas, sempre com aqueles sorrisos incompreensíveis para ocidentais, eram imbatíveis em pingue-pongue e dobraduras. Protegidas por pequenos chapéus de pano ou palhinha trançada, anotavam e fotogravavam tudo que viam. Edith, nissei, a guia da excursão e intérprete, havia posto em suas lapelas crachás com nomes anglo americanos – Daisy, Doris, Thea, Gloria, Susy, Sandy, Alice.
Apesar da barreira linguística, não conseguiram escapar à fé missionária de Miss Grace que as atacou com seus fantochinhos do velho testamento, uma bíblia na mão e folhetos contra o fumo e o álcool. Respeitosas, as orientais aguentaram o culto pop sem reclamar, fizeram reverências quando tudo acabou e não se via em seus rostos o menor sinal de deboche ou saco cheio.
Miss Grace ficou ainda um tempo no convés de olhos fechados e braços amplamente abertos agradecendo ao Salvador pela conversão de mais uma penca de almas budistas. O navio fez uma pequena manobra, ela caiu e quebrou a cabeça do fêmur e o antebraço direito. O médico de bordo fez o que estava ao seu alcance até a chegada do navio em Manaus onde Miss Grace decidiria operar-se no Brasil ou voltar para sua terra. Foi por causa desse episódio que todos ficaram sabendo que Miss Grace viajava acompanhada de um sujeito, um marido, que se recusava a sair da cabine, um homem muito mais novo que ela, bonito, musculoso, que se exercitava no convés de madrugada depois que todos já estavam dormindo.
O médico de bordo contou ao capitão que o tal marido queria que chamassem um helicóptero, como nas séries de televisão.
Aquele que era chamado de médico nunca havia se aproximado de uma escola de medicina na vida. Trabalhou como enfermeiro em diversas Santas Casas no interior de Goiás e do Maranhão onde aprendeu noções de pronto-socorro e observou o que os médicos faziam. Mas nunca se meteu a fazer cirugias, apenas costurou acidentados quando não tinha saída. Um dia, em Belém, conheceu o capitão Benevides em um asilo para velhos onde ambos visitavam suas mães. Dali foram a um bar, beberam e o doutor acordou dia seguinte em um dormitório coletivo do Estrela de Santarém. Para virar o médico de bordo não precisou de muita ciência e sim do armário de medicamentos da enfermaria do navio. Seu antecessor, que também não era médico, tinha se aposentado.
“Difícil aparecer inspeção sanitária, é só você estar sempre vestido de branco que ninguém vai pedir o seu diploma, doutor.”
Os dois riram, apertaram-se as mãos, à noite fizeram um brinde e não se esqueceram de dedicar um gole ao santo pois afinal de contas precisavam mesmo de proteção do além.
“O Estrela de Santarém não tem capacidade nem espaço para receber o pouso de um helicóptero !”
O resto do dia foi tenso. Dona Lina, que não se separava de seus comprimidos de valeriana e maracujá, tomou sua dose e dividiu com os amigos mais próximos. O casal em lua-de-mel embebedou-se-se com copos e mais copos de água com açúcar e um pouquinho de vinho licoroso receitados por Hebe e Otília.
“Quando tinha tempestade com raios e trovões, mamãe reunia os filhos debaixo da mesa, lia a Bíblia e cada um tomava um gole dessa água santa e que não faz mal”, disse Otília.
“Meu pai era médico e a gente sempre tomou um pozinho que ele mesmo misturava e socava no almofariz. Era um pouco amargo mas, misturado com laranjada e sal efervescente, ficava uma delícia. Não dava nem tempo de rezar, a gente dormia na hora !”, contou o português da Madeira.
Os passageiros ficaram inseguros, alguns mesmo em pânico a pensar em acidentes, naufrágios e outras desgraças. Só as crianças tiraram proveito da situação e inventaram brincadeiras que desagradaram os mais velhos.
O capitão, ao lado do médico e membros graduados da tripulação, reuniu os turistas que ouviram uma curta preleção sobre a segurança do navio e das viagens fluviais. “Você corre mais perigo dentro do seu automóvel do que neste navio.”
No jantar, estimulados pela caipirinha extra oferecida pelo capitão, surgiram versões de como seria a remoção de Miss Grace.
“Presa por um colete e içada por um helicóptero, a velha vai balançar sobre as águas do Amazonas e atrair piranhas, jacarés, anacondas e os vírus que ela tanto teme.”
Um passageiro mais gaiato descreveu Miss Grace de outra maneira:
“Já pensaram a gringa dentro de uma rede bramindo seus fantoches bíblicos para os bichos do rio, que nem um moderno São Francisco de Assis ?”
“Será que ela anima o marido com aqueles bonequinhos ?”
De vez em quando dava para ouvir os uivos de dor da americana vindos de seu camarote.
Nos dias seguintes quem subiu foi o marido que, dourando-se ao sol amazônico vestido com uma sunga reveladora, mexeu com os interiores de Hebe, Otília e mesmo de Dona Lina, certamente virgens sem mais remédio. Ada, sem homem desde o final de seu curto casamento, gostou do que viu e falou ao ouvido de Dona Lina:
“Que desperdício esse filé mignon na cama daquela gringa feia !”
“Você deve ter reparado que ele não fala uma palavra em inglês.”
“E precisa, nega ?”
O riso delas se transformou em tosse e uma precisou dar tapas nas costas da outra. Hebe e Otília, ao saber do malicioso comentário, mijaram nas calças e precisaram correr ao banheiro. Atena perguntou à mãe a razão de tanto riso mas levou um tapa na cara, o primeiro de sua vida. Ada culpou-se e chorou o resto da tarde de puro arrependimento.
Dos cinquenta passageiros, cinco ou seis não se enturmaram por diversas razões. Um senhor, seu Artur, acompanhado pelo filho, já estava bem encaminhado na estrada do Alzheimer, o “amigo alemão do meu pai”, como brincava o filho.
“Deve ser a última viagem dele e eu queria estar junto. Mamãe faleceu de repente há cindo meses e, desde então, ele foi ficando estranho e os exames deixaram claro o que estava acontecendo.”
Feliz, sempre sorridente e bem vestido, um foulard inseparável no pescoço, seu Artur olhava o rio e imaginava aventurosas pescarias; de vez em quando fazia planos com o filho, pescariam gigantes naquelas águas. Quando foram apresentados no dia da subida a bordo, quase todo mundo ficou escandalizado mas teve que se conformar com a idéia de viverem algemados; o filho temia que o pai se atirasse no rio. E, vice versa.. . Marion, a mal encarada policial vizinha de camarote dos dois ouvira conversas quando o navio já estava longe e não podia mais voltar: o pai estava com princípio de Alzheimer mas ainda ciente das tendências suicidas do filho mais novo, hsvia cicatrizes em seus pulsos, manchas escuras de picadas nas veias do braço. Em público, apesar da visão das algemas, os dois eram pura alegria, bom humor, alto astral, até dançavam, sapateavam. Conversaram muito com o marido de Miss Grace que só os escutou sem tirar o olho das algemas.
Ao grupo dos afastados pertenciam também duas religiosas estrangeiras, rumenas segundo boatos, que pareciam muito tristes mas ninguém ficou sabendo por que. Um menino endiabrado ergueu-lhes as saias para espiar a calcinha e descobriu que usavam uma calçona. Apesar do sucesso entre as demais crianças, inclusive Atena que precisou até da bombinha para asma, Agenorzinho levou uma surra dos pais e ficou de castigo, um dia inteiro sem falar, sem dar um pio. E sem as sobremesas do dia que eram sorvetes de frutas da região.
Dona Lina, cheia de boa vontade, tentou se comunicar com elas por sinais que aprendera com os mudos mas nada conseguiu. Contou às amigas que as religiosas cheiravam mal e ninguém mais se aproximou delas.
Os boatos corriam soltos inventivos, maldosos. Dona Lina nunca ficou sabendo mas tinha sido apelidada por Hebe e Otília de Seu Vicente por causa do buço bigodudo e do pouco cabelo que tinha no alto da cabeça. Por mais que tingisse não tinha jeito, o branco couro cabeludo aparecia. Seu Vicente era alguém de seu passado, um doceiro que vendia quebra-queixo na porta do Grupo Escolar.
Quando faltavam apenas três dias para terminar a viagem, avistaram um navio cargueiro lotado de apetrechos, bagagens, artistas e animais de um circo que também se dirigia a Manaus. Parecia mentira, adultos e crianças ficaram encantados, acenaram para os artistas, alguns até choraram emocionados.
O navio circense os ultrapassou e alguma coisa pegou mal no interior de Dona Lina, sem que ela conseguisse localizar. Não podia explicar sua depressão, o máximo que estivera perto da psicologia foi pelo convívio com uma professora da matéria na Escola Normal. A tal mestra era tão improvisada quanto o médico do navio, suas aulas consistiam em ditados de páginas de um livro conseguido na biblioteca. Dona Lina não conseguiu mais rir das piadas, do pessoal do navio e foi invadida por uma melancolia que preocupou tanto as pessoas de seu grupo quanto outros passageiros do Estrela.
“Quando a gente chegar em Manaus, tia Lina, vamos todos juntos ver o circo, todo mundo do navio ?”
Lina olhou para Atena, passou a mão na cabeça da menina e voltou para sua cabine. Achou um maço de cigarros meio amarfanhado na mala, acendeu um, deu um único e longo trago e o apagou na pia. Deitou-se na cama e imaginou-se escrevendo nas paredes:
“O Latim acabou para sempre. O Latim morreu !”
O Latim que a sustentara durante tanto tempo, que a fizera sentir-se orgulhosa e exclusiva por conhecer uma língua que existia havia tantos séculos, o Latim ia terminar e ela, a temida Dona Lina famosa pelas segundas épocas rigorosas, ia desaparecer junto. Seu nome ficaria nos registros e velhos diários de classe e seu retrato jovem em quadros de formatura de muitas turmas. Lembrou-se do professor Giacometti, “tinha tanto jeito, era tão artista, desenhava à mão flores, mãos, pés, toalhas penduradas com dobras tão bem desenhadas que dava vontade de enxugar a mão”.
Foi aquele grande e pouco reconhecido artista chamado Tommaso Giacometti quem havia desenhado com lápis de cor o rosto de Santa Teresinha que Lina tinha enviado a sua mãe. A pele, os olhos, ah se não fosse a divina inspiração !Que perfeição, que desperdício ele ter ido parar naquela lonjura, naquele colégio estadual sem alma intocado pela graça divina. Não se recordava se ele tinha sido enterrado em Ubá ou Uberlândia, era mineiro, católico fervoroso, vestia-se com túnica roxa e carregava uma pedra pesada nas procissões de Sexta-feira Santa.
“Há pouco tempo me disseram que o professor Giacometti, depois de aposentado, tinha virado pastor evangélico mas eu não acredito. Tudo, menos isso !”
Dona Lina, sem o Dona, apenas Lina, nunca havia parado para pensar mas a apertada cabine do Estrela de Santarém não lhe deu chance de escapar. Ela e Teobaldo, o irmão nasceram em Santa Bárbara mas passaram anos estudando em internatos católicos em São Paulo e Campinas, onde se formaram; em seguida prestaram exames vestibulares, ela para Letras Neo-Latinas e ele para a Escola de Belas Artes. Ele, mais velho um ano que ela, trancou a matrícula durante um ano para frequentar estúdios de pintores em Paris e Florença; ela, mais tímida, continuou seus estudos, tomou aulas particulares de francês, italiano e inglês e só viajava nas férias de Campinas para Santa Bárbara. Teobaldo voltou, retomou a faculdade e, junto com a irmã, prestou concurso para o magistério público. Aprovados, escolheram cadeiras, ele em Pelotas e ela em Bastos, cidade povoada por japoneses, onde ficou um ano e depois transferiu-se para a então próspera Jurupari, onde fincou o pé por trinta anos. Nem ela nem a cidade saíram do lugar. As sucessivas lavouras de café cansaram as terras onde até os pés de tiririca custaram a reaparecer. Mas uma população altiva continuava a manter a pose pois ainda não haviam perdido tudo.
Já aposentado, o irmão morreu assassinado poucos meses após sua volta a Santa Bárbara e seu corpo foi encontrado perfurado por uma centena de facadas em um riacho poluído perto do leito da via férrea desativada. Crime nunca solucionado. Quem viu disse que haviam poupado o belo rosto. Mortos os pais, Lina não pode deixar de ir ao enterro mas não sentiu um pingo amor pela cidade. Na cabine do navio, agora, suspirava e sentia dor no peito só de pensar em voltar à cidade e à casa sem gente, repleta de lembranças. Sentiu raiva do irmão.
O navio vivia os últimos dias da viagem desse grupo e se preparava para a coroação da Rainha do Estrela de Santarém, a acontecer no penúltimo dia. Discutiram muito se convidariam Lina ou as irmãs Otília e Hebe para coroar a favorita Atena. Outras candidatas choraram, não quiseram saber se a futura rainha era doente ou não e até ameaçaram contar e inventar um dia para seu iminente final nesta terra. Foi preciso uma reunião com os pequenos para fazê-los jurar que não magoariam Atena.
“Se contarem, vocês vão para o inferno, o Diabo vai espetar suas almas e vocês vão ser assados na fogueira de Belzebu para todo o sempre.”
Valeu a ameaça. Ninguém contou e todos fizeram um juramento cruzando os dedinhos.
Combinaram que seu Artur, mesmo algemado, seria coroado rei pelo próprio filho.
“Atena, Rainha do Amazonas”, “O Rei Artur é pura alegria !.” “Atena é a alma deste navio.” “Seu Artur é muito gente.”
Comandadas pelo casal em lua-de-mel, várias pessoas se ofereceram para escrever nas faixas de plástico fornecidas pelo capitão.
Na manhã da festa da coroação, último dia da excursão, Ada bateu à porta da cabine, pediu para entrar e informou Lina de tudo que estava acontecendo. Fez o que pode para animá-la mas parecia uma dor incurável, vazia, cujos defuntos eram o Latim e o irmão assassinado. Inconformada com a apatia da amiga, Ada tentou um último recurso: convidou-a para junto com ela, acompanhar o restante da vida de Atena,
“Vou precisar de reforço”.
Depois de muito chorar, Lina foi ao banheiro, lavou o rosto, passou um leve batom, avermelhou as faces com rouge e pingou uma gota de perfume em cada orelha. Juntas subiram a escada e foram unir-se ao resto da festeira tripulação.
Sob ordens do comandante, os marinheiros improvisaram com a mesa do refeitório uma espécie de altar decorado com metros e metros de lampadinhas coloridas compradas no último Natal e flores de plástico variadas usadas mas cheias de boas intenções. Não economizaram nas serpentinas que envolviam o altar, os tronos do rei e da rainha. para subirem, foram postas escadinhas pintadas com a mesma tinta dourada dos tronos que, embora ainda grudando, nznao estragaram a festa.
Atena e seu Artur estavam radiantes. Ada chorava abraçada a Lina. O filho do seu Artur teve que ser incluído e virou uma espécie de príncipe coroado com uma tira de papel feita à última hora. O estranho rapaz também chorou.
Quando Lina depositou a coroa na cabeça da rainha Atena, foi um estrondo de aplausos , rojões mas uma minoria, escutou, perto do trono, uma inconformada garotinha gritar:
“Atena, eu te pego na saída.”
A alma de Ada doeu mas Atena sacudiu os ombros, fez sinal de dor-de-cotovelo, mostrou a língua; estava rainha e linda demais em sua fantasia de fada para se importar com a súdita invejosa.
FIM
11-06-2012